“Quem quebrar esta tableta ou a puser na água, os deuses dos céus e da terra e os deuses da Assíria podem todos amaldiçoá-lo”.
Entre quase trinta mil placas de terracota encontradas na antiga biblioteca do rei assírio Assurbanipal, esses dizeres despertam a atenção. As tabletas, consideradas os primeiros livros da humanidade, nasceram na Suméria há mais de cinco mil anos. Conservá-las já era uma preocupação, mesmo na coleção de Assurbanipal, em Nínive, na antiga Mesopotâmia.
O berço da literatura, onde é hoje o sul do Iraque,também foi pioneiro na sua destruição. As guerras entre cidades-estado queimavam as plaquetas, além de despedaçá-las em meio a combates. Isso porque os ataques, além de reduzir o inimigo a ruínas, tinham por objetivo aniquilar sua cultura.
Estes dados podem ser encontrados na obra “História Universal da Destruição de Livros”, de Fernando Báez. O autor afirma que cerca de 60% dos livros são destruídos pela “mão violenta do homem” e 40% por outros fatores, como desastres naturais, acidentes, animais e a degradação de seu material.
Na Biblioteca
No Sistema de Bibliotecas da UFMG, a destruição está presente em manchas, rabiscos, amassados e outros tipos de danos materiais aos livros. Em 2014, apenas na Biblioteca Central, o gasto para recuperar livros danificados superou 20 mil reais, sem contar o prejuízo com obras que precisaram ser descartadas. Preservar o livro, por outro lado, não custaria nada.
A história se repete: o memoricídio na terra onde nasceram os livros
É também no Iraque que perdura uma destruição sistemática de livros, com a invasão dos Estados Unidos e ações do Estado Islâmico. Seja pela omissão dos soldados americanos ou pelos saques e ações de extremistas realizadas no país, a perda de conhecimento é irreparável.
Na mesma época do saque ao Museu Arqueológico de Bagdá, em abril de 2003, ocorreu a queima de um milhão de livros na Biblioteca Nacional. Mais de dez milhões de registros do período republicano e otomano do Arquivo Nacional também arderam, junto a diversas bibliotecas universitárias, como as da Universidade de Bagdá e de Awqaf.
O Museu de História Natural, as Bibliotecas Pública Central, da Universidade e a Islâmica de Basra também foram incendiadas.
Em março deste ano, a atual província de Nínive foi palco da queima de centenas de livros pelo Estado Islâmico. A escolha da destruição pelo fogo não é mero acaso. Báez aponta que ela evoca o ritual de permanência e purificação, que busca restituir o equilíbrio, poder ou transcendência. “É disso que se trata: queimar o passado é renovar o presente”, reflete o escritor.
A informação como ameaça
Há outro motivo por trás da destruição: o caráter “nocivo” do livro. O professor Luís Villalta, da Faculdade de História da UFMG, explica que uma obra pode trazer ideias que levem à subversão e ameacem a ordem religiosa, moral, social ou política. “Ele pode ser uma fonte de informação, objeto de deleite ou ícone de honra e distinção social. Por um desses elementos ou esses elementos como um todo, o livro se tornou objeto de controle e interdição”, diz Villalta.
No século XVIII, por exemplo, uma das preocupações constantes da realeza europeia era a dispersão do pensamento iluminista. Villalta destaca as cartas de um padre francês, enviadas tanto à rainha de Portugal quanto ao rei da Espanha, denunciando o fluxo de livros que ameaçava o Antigo Regime.
“Rainha, tome cuidado” é o que, em suma, essa correspondência queria dizer. “Nós temos uma multidão de livros publicados em francês, de Rosseau, Voltaire, que estão saindo rumo a Lisboa. Eles são extremamente perigosos”, parafraseia Villalta. Além da preocupação com a circulação dessas obras no país, havia também outra questão: esses livros podiam ser levados ao Brasil e, a exemplo do que aconteceu na América Inglesa, serem base de uma revolução contra a Coroa.
Censura
No Brasil, não houve prensa gráfica até a vinda da corte em 1808. Os livros precisavam atravessar um oceano para que pudessem chegar às mãos dos brasileiros. Dessa forma, o controle sobre a leitura era extremamente rígido e regulamentado.
O mundo luso-brasileiro possuía três órgãos de censura: o Desembargo do Passo, que era um tribunal régio; a Inquisição em Portugal e os juízes e tribunais existentes em cada uma das dioceses.
Esses tribunais censórios, muitas vezes, faziam um trabalho de supressão, riscando e apagando determinados trechos de livros. Outra prática era simplesmente acabar com a circulação do livro ou ordenar sua queima, devido ao seu caráter herético ou “perigoso”.
Os livros e a honra
Seguindo as leis portuguesas, no Brasil algumas pessoas tinham o direito de ler ou possuir livros proibidos. “Fosse para combater as ideias dessas obras ou por demonstrar fidelidade à monarquia ou à religião, era um signo de grande honra”, conta Villalta.
Ter o direito de ler um livro proibido não permitia necessariamente que a pessoa o possuísse. Nesse caso, ela só leria dentro de um local específico, como um convento ou monastério. No caso de uma pessoa que pudesse ter a obra em casa, o controle de sua leitura se tornava problemático: como fiscalizar quem teria acesso a ela?
Para a nordestina Paula Siqueira, conseguir um desses livros não foi um problema. Para a inquisição, foram dois: Paula foi acusada de prática de sodomia feminina e leitura do livro proibido “A Diana”, de Jorge Montemor. A obra é cercada de conflitos, triângulos amorosos e desencontros entre amantes, dentro e fora do casamento. Ela foi condenada apenas pela leitura da obra, pela qual foi castigada publicamente em 1591.
Fato é que os romances despertavam o medo das autoridades monárquicas e religiosas. “O livro como deleite também tem um componente nocivo, se a gente pensar que ele pode mexer com os sentidos e despertar prazeres sensuais em quem, em teoria, não ‘deveria’ ter: mulheres solteiras, sozinhas e sem maridos, por exemplo”, explica Villalta.
Queimar, proibir, censurar ou tirar de circulação. Só se ataca o livro com a intenção de aniquilar a memória que ele encerra. Como diz Báez, “se destrói aquilo considerado como ameaça a um valor considerado superior”.
“O livro não é destruído por ser odiado como objeto”, explica o pesquisador. Pode ser uma tableta entre os sumérios, um osso entre os chineses, uma pedra, um pedaço de couro, um papel, um CD ou um dispositivo eletrônico. O que interessa mesmo é o seu conteúdo – e a quem ele afeta.
“É importante que a gente tenha essa perspectiva histórica para não pensar que estamos imunes a uma tentativa de se queimarem livros de novo sob algum pretexto”, reflete Villalta.
Dica
Para conhecer mais da obra de Villalta, consulte “Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações”, disponível no Sistema de Bibliotecas da UFMG.
(Lívia Araújo)